Sunday, June 15, 2014

I know I'll never know a peaceful night again

Ele estava novamente no trem, como se nenhum tempo houvesse se passado desde que conhecera Henrike pela primeira vez, mesmo que ele soubesse – bem demais – que já havia se passado uma eternidade. Não sabia como havia chegado aqui, o que provavelmente queria dizer que ele estava sonhando – mas não era como se esse fato realmente importasse. Ele já não se preocupava mais em diferenciar suas ilusões pessoais da realidade, um tipo de comportamento que a maioria dos psiquiatras classificaria como problemático, caso ele ainda tivesse vontade o suficiente para frequentá-los. No entanto, daquela vez em específico ele sabia que a cena já lhe era familiar demais para ser verdadeira. Tudo estava perfeitamente alinhado em seu lugar, de uma maneira que jamais acontecia na vida real, e todos os atores e cenários estavam prontos para o que seria mais um espetáculo fornecido pelo seu subconsciente. Ele suspirou profundamente antes de entrar na cabine.

A manhã era clara e as nuvens brancas e macias estavam espalhadas pelo céu, distantes o suficiente uma das outras para que o manto azul se estendesse livremente acima de suas cabeças. Ele sempre se lembrava de todos os detalhes. Era a sua benção e maldição, Henrike costumava dizer. Ele se lembrava como o assento do seu lado do compartimento estava levemente manchado de marrom – a cor quase se perdendo no azul escuro do próprio tecido, mas ainda suficientemente visível para que ele percebesse a falha assim que botou os olhos no local –, provavelmente por culpa de um passageiro descuidado que derramara café sobre o estofado. Isso, no entanto, ele jamais poderia afirmar com certeza.

Demorou alguns segundos para que percebesse a presença de outra pessoa no boxe, o tempo exato que precisou para guardar sua bagagem de mão e se sentar de frente para o seu companheiro de viagem, e mesmo assim tudo o que ele conseguiu enxergar a primeira vista foi a capa da revista sobre medicina – psiquiatria, especificamente – onde deveria estar o rosto pálido e de feições delicadas, além de uma jaqueta de tweed cor de café, cobrindo quase completamente uma camisa social azul-claro que ele viria descobrir a ser exatamente da cor de seus olhos. A cor do céu que se movimentava lentamente do lado de fora da janela. O azul mais vivo e brilhante que ele jamais conheceria.

Entretanto, ele ainda não sabia disso naquele momento, de maneira que seus olhos se fixaram primeiramente na capa da magazine, lendo rapidamente os subtítulos de maneira quase desinteressada. Alguma coisa dentro de si dizia que daqui a alguns segundos o outro homem perceberia sua presença e abaixaria a revista, deixando que ele contemplasse os orbes azuis pela primeira vez, preenchidos por um misto de surpresa e amabilidade, mas quando Henrike finalmente revelou seu rosto foi Dominik que se assustou, o corpo se sobressaltando levemente diante da visão ensangüentada do alemão sentado a sua frente.

Vermelho.

O oceano profundo e denso pelo qual ele esperava nada mais era do que círculos opacos e sem vida, olhos daqueles que já não podem ver ou sentir. Seu rosto estava coberto pelo sangue. Vermelho. O seu mundo vai lentamente se transformando em vermelho e até mesmo o céu – a manhã clara do lado de fora da janela – assume a cor avermelhada das madrugadas. Depois disso não demorou muito até que ele percebesse que suas mãos e suas roupas também estavam encharcadas de sangue. O sangue de Henrike. A denúncia de seu crime. Ele engoliu a seco, encarando a figura imóvel a sua frente com um horror que beirava ao desespero.

Não era para isso estar acontecendo, ele pensou consigo mesmo. Incapaz de se mexer ou formular qualquer outro pensamento coerente. Ele sabia que não havia nada que ele pudesse fazer, de qualquer maneira. A impotência perante das conseqüências de suas próprias ações amarrando suas cordas invisíveis em volta de seu corpo. Sufocando-o lentamente diante do peso desmesurável de sua perda.

Em algum momento Henrike lhe deu um sorriso triste, os lábios pálidos e sem vida se movimentando apenas ligeiramente, como se até mesmo o ato de sorrir lhe causasse dor.

– Foi você que fez isso, Dom. Porque está tão surpreso? – Ele disse, naquela voz calma e serena que lhe era tão característica.

É sempre nesse preciso momento que ele costuma acordar, os olhos se abrindo subitamente e encarando o teto branco do quarto vazio, enquanto o seu coração afunda dolorosamente em seu peito. Seus olhos percorrem o quarto encoberto pelas sombras numa mistura de alívio e decepção, não sabendo qual dos seus destinos é o mais cruel: o sonho ou a realidade.

Monday, June 2, 2014

She’ll never let you go

Ele dizia para si mesmo que não voltaria atrás. Iria esquecê-la e seguir com a sua vida, muito bem, obrigado. Ele ignorava todas as chamadas, às vezes até desligava o celular. Acordava de manhã e levantava antes que tivesse tempo para encarar a metade vazia da cama, porque se alguma vez tivesse parado para pensar, provavelmente chegaria à conclusão de que ela sempre estivera fazia, mesmo quando havia um amontoado de cabelos castanhos espalhados pelo travesseiro. Porque ela nunca esteve realmente ali. Não para ele. Nunca para ele.


Ele ia para o trabalho e sua mente desligava durante boa parte do dia. Um perfeito, porém humano, robô. E então, exatamente às seis e meia da tarde, ele era liberado e caminhava até sua casa, que felizmente não era tão longe assim. 100 ruas, duas viradas à esquerda, uma à direita, atravessando direto uma avenida, entrando numa rua onde o poste de iluminação havia quebrado há mais de um mês e ninguém havia se importado o suficiente para consertar. Era um prédio velho, mal pintado e relativamente barato para o bairro. Morava no sétimo andar e, por se tratar de um local antigo, não havia elevador, sendo sua única opção a escada. Ele subia, subia e subia. Parava no quarto ou no quinto andar para recuperar o fôlego, para recomeçar a subir. As escadas são a pior coisa, ela costumava dizer, mas pelo menos servem de academia.

Por falar nela, quando chegava ao sétimo andar a encontrava sentada ao lado de sua porta. Curiosamente, ela sempre estava lá. Era a mestra da manipulação e das desculpas bem elaboradas. Não que ela gastasse saliva se explicando para ele, tinha plena consciência de que ele não conseguiria resistir e apenas permanecia em silêncio enquanto o observava abrir a porta. Ele fingia que ela não estava ali, mas sabia que estava. Ele conseguia sentir o cheiro dela e, mesmo estando de costas, sabia que ela estava segurando um sorriso. Seus cabelos castanhos caindo delicadamente pelo seu rosto, embora “delicada” fosse a última palavra que usaria para descrevê-la. E havia seus olhos, seu lindos e sempre brilhantes olhos. Uma vez ele até brincara dizendo que eles brilhavam tanto para tentar esconder seu coração gelado, mas ela não gostou da brincadeira e agora ele sabia que era porque falara a verdade. Aqueles olhos que o seguiam para todos os lados, sempre atentos e astutos, e que sempre fazia com que ele sentisse como se houvessem armas apontadas em sua direção. Um tiro à queima-roupa. Uma morte rápida e certeira.

Finalmente ela soltava o sorriso que estava segurando, assim que entravam no apartamento, e o empurrava para uma parede qualquer. Ele desistia de lutar e entregava-se como se fosse a primeira vez. Deixava-a pisar mais um pouco em seu pobre e cansado coração e nem mesmo conseguia reclamar, porque bastava vê-la para que ele se apaixonasse novamente.

E mesmo que acordasse no meio da noite e sua cama estivesse vazia ele sabia que, de uma maneira dolorosa e reconfortante, ela sempre estaria esperando do lado de sua porta. Porque ela nunca o deixaria ir.

(escrito em 21/08/2013)

Heartbreaker


Ela gostava porque era fácil. Porque ele nunca reclamava, nunca ficava com raiva, nunca a rejeitava. Ele a amava. E ela gostava de como as palavras soavam quando ele as dizia baixinho, achando que ela já estava dormindo. Mas ela nunca dormia, seus olhos nunca se fechavam em descanso, e enquanto a noite corria, lentamente dando espaço para o amanhecer, a culpa a pressionava seu peito a ponto de fazê-la perder a respiração. Ela sentava na cama e encarava a face adormecida dele, sereno e feliz. Era tão injusto que ela não sentisse o mesmo. Ele estava ali, pronto para dar todo o amor do mundo para ela, e ela simplesmente não conseguia retribuir.

Consumida pela culpa ela recolhia suas roupas, vesti-as e saia na ponta dos pés do apartamento.

E ele nunca reclamava de acordar sozinho, não em voz alta, porque no fundo, ela sabia que a cada dia que ele acordava e encarava o espaço vazio na cama, seu coração era quebrado em pedaços cada vez menores. Ela esperava que algum dia ele pedisse que ela parasse, que ele a visse parada na frente da porta do seu apartamento e tivesse força o suficiente para mandá-la embora. Ir embora e nunca mais voltar.

Era o que ela esperava, todas às vezes. Mas ele nunca fazia, e ela sentia quase que alivio quando ele retribuía seu beijo desesperado. Os dois corpos se colando como se fossem um só. Mais um dia, ela pensava. Só mais um.

Ele arrancava seu coração do peito e lhe entregava em uma bandeja para ela fazer o que quisesse. E ela fazia. Mesmo sabendo que era uma pessoa horrível por isso, simplesmente não conseguia resistir. Não quando ele era sempre tão entregue a ela daquela maneira.

Porque depois de cada dia de merda, de cada desilusão, ela sempre iria ter aquele coração quente e pulsante em suas mãos. Para acariciá-lo ou esmagá-lo. Não importava. Desde que estivesse ali.


(escrito em 07/09/2013)