Monday, August 19, 2013

Denise Marie Naslund¹

Abro os olhos e a luz intensa me cega momentaneamente. Branco. Tudo é tão claro aqui, o meu sangue é a única cor do local. Ele está espalhado pelas paredes, pelo chão e pelo lençol que cobre parcialmente meu corpo. Ele vai do vermelho vivo ao vermelho ferrugem, passando pelo vermelho escuro como vinho. Todas as tonalidades se misturam e o cheiro, sempre tão intenso, parece preencher o ar abafado e frio da pequena sala.

Minha cabeça dói. Minha visão está embaçada, como se tudo estivesse fora de foco, distante. Meu pensamento está lento e eu só percebo as algemas quando tento me mexer e elas me seguram no lugar. Então tudo volta, em flashes. A tortura, o horror. O hálito suave e frio no meu pescoço, o peso do corpo dele em cima do meu. Os cortes. É como se tudo estivesse acontecendo de novo. Sinto como se fosse vomitar.

Minha cabeça lateja cada vez mais forte e eu tenho dificuldade para respirar. Tento me acalmar e regular a respiração até que eu recupere o controle, não posso ter outro ataque de pânico aqui. Mas, como se meu corpo sentisse prazer em me contradizer, começo a chorar. Preciso me controlar, preciso pensar racionalmente, mas as lágrimas não obedecem ao meu comando e continuam a cair freneticamente.

Aposto que foi exatamente isso que todas aquelas garotas que apareceram no jornal fizeram. Choraram. Imploraram pelas suas vidas, entre os soluços. E agora elas estão mortas. Seus corpos foram jogados em um rio qualquer, onde elas ficaram boiando por dias e dias até que a polícia as encontrasse. Depois foram parar em um necrotério qualquer, onde foram abertas – mais um corte para a coleção –, reviradas ao avesso até que se chegasse a uma conclusão: mortas por asfixia. Então, esperariam sobre a maca de metal até que algum familiar viesse reconhecer o corpo. Algumas papeladas burocráticas até que fossem liberadas e enterradas, provavelmente no mesmo cemitério que o resto dos parentes mortos. E então, elas não eram mais nada. Apenas mais uma na lista de um serial killer maluco.

Sinto raiva, mas isso é bom, porque significa que eu consegui me controlar o suficiente para canalizar minha energia em alguma coisa que não seja o terror. Odeio-o. Odeio-o com tonta a força que ainda me resta. Odeio como todas aquelas garotas que tinham a vida inteira pela frente foram mortas por um capricho. Uma compulsão, os livros diziam, como se ele não passasse de um animal que não consegue controlar seu instinto. Como se tivesse algo o obrigando a fazer aquilo. Não! Claro que não. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. Gostava de fazer aquilo, gostava de ver a dor estampada nos rostos de suas vítimas, gostava da caçada, do assassinato. Ele provavelmente havia fantasiado aquilo milhares e milhares de vezes na sua cabeça doentia antes de sequestrá-las.

Mas o mais injusto disso tudo é que no final é ele quem vai entrar para a história, que vai ter o nome em revistas, livros e, até mesmo, em filmes. É a mente dele que os psiquiatras e psicólogos vão tentar entender. Ele que vai receber milhões de cartas na prisão, metade delas desejando sua morte, mas metade admirando seu trabalho. Isto é, se ele for preso. Os que conseguem escapar são ainda mais famosos. Afinal, quem nunca ouviu falar do Jack, o estripador ou do Zodíaco?

Eles vivem no imaginário popular por anos, décadas, séculos. Enquanto todas as vítimas – que foram torturadas, estupradas, mutiladas, decapitadas, estripadas – são esquecidas, jogadas a sete palmos abaixo do chão e deixadas lá, sozinhas, nos braços do tempo. Eventualmente o passar dos dias “cura” suas feridas, é claro. A decomposição dos seus corpos apaga as evidências da tortura, mas apaga também quem elas foram. Suas risadas, seus olhos, suas expressões. Nada disso permanece. Ele tirou tudo delas, suas personalidades, seus corpos, suas vidas. Fez com que seus últimos momentos de vida não fossem nada mais que dor e desespero. Horror. Medo. Até que, por fim, fizera com que elas desejassem a morte, apenas para que a dor fosse embora e não tivessem que sentir mais aquilo.

Onde elas estão agora? Será que imaginaram que iriam para o céu? Que finalmente descansariam em paz quando tudo aquilo acabasse? Eu não sabia. Ninguém poderia saber.

Meu choro parece uma canção de ninar, leve e suave. As lágrimas, que antes machucavam tanto quanto a faca fria que abria minhas feridas, agora são apenas um pesar conformado. Impotência, o pior sentimento do mundo. Não há nada que eu possa fazer além de chorar pela vida que eu tinha e que morre lentamente conforme o passar dos segundos, junto com tudo o que ele roubou de mim.

Ouço um click e a porta se abre. E percebo que eu sou uma daquelas garotas.

¹Uma das vítimas de Ted Bundy. Ela tinha 19 anos e foi sequestrada em 14 de Julho de 1974