Bem, o fato é que ela nunca gostou nem das pessoas, nem da cidade. Nada ali lhe agradava. Desde sua infância ela sempre sentiu uma aversão profunda e verdadeira pelo local onde nascera, a ponto do pensamento ter se enraizado tanto em sua cabeça, ao longo dos anos, que era impossível ver uma qualidade sequer naquele pedaço de mapa. Ela só via os defeitos. As ruas que eram esburacadas e sujas, os prédios históricos eram acabados e abandonados, o governo era corrupto e a má educação parecia contagiar todas as pessoas na hora de pegar transportes públicos: ninguém esperava os passageiros descerem antes de se forçarem para dentro do veiculo ou cediam o lugar a uma pessoa de mais idade ou alguém carregando sacolas pesadas. Não havia exposições de arte, museus ou show de bandas famosas. Não havia opções de lugares acessíveis para se divertir. Poderia-se até dizer que era um lugar esquecido por Deus.
Mas curiosamente havia pessoas que gostavam de morar ali. Ela não conseguia entender, de verdade. Durante todos os seus anos de vida havia detestado tanto aquele lugar que não entrava na sua cabeça que alguém pudesse nutrir sentimento oposto. Não fazia sentido. Como aquelas pessoas conseguiam se contentar com uma vida daquelas? Bem, não importava de verdade. Não cabia a ela julgar as motivações e afeições dos outros, apenas cuidar das suas. Que todos aqueles que gostavam daquele fim-de-mundo continuassem ali, felizes e satisfeitos com suas vidas. Ela não conseguiria. Acharia um jeito de sair dali o mais rápido possível, antes que enlouquecesse.
E ela sentia que já estava ficando maluca, só que de tristeza. Às vezes ela acordava de manhã e ao lembrar de onde se encontrava não tinha vontade nem de levantar da cama. Muitas noites ela chorara em desespero, sabendo que não poderia ir embora tão cedo. Seus pais diziam que ela era muito nova, muito dependente, muito inexperiente. Ela teria que crescer primeiro, atingir alguma estabilidade financeira, para só então começar a planejar sua fuga. Fuga. Poderia parecer exagero, mas tudo o que aquela cidade representava para ela era uma prisão, algo que a impedia de atingir sua liberdade, que lhe afastava do mundo que queria viver, conhecer e experimentar. Ela mal podia esperar sair pela porta velha da casa que vivia com sua família e nunca mais voltar. Não sentiria falta. Não da casa, ao menos. Talvez sentisse falta dos seus familiares, já que comparado com o resto das pessoas dali eles eram legais. Boas pessoas. Mas ela não sacrificaria a própria felicidade para permanecer junto deles. Não venderia sua liberdade nem pelas pessoas que amava.
Assim que ela tivesse colocado seus pés para fora daquele local horrendo ela finalmente seria feliz, sabia que seria. Tinha que ser. Ela se mudaria para uma cidade nova e conheceria pessoas realmente legais, pessoas que iriam entendê-la, e faria amigos. Poderia ir para todas as exposições de arte, museus e shows que quisesse. Andaria em ruas limpas e as pessoas seriam educadas. Ela talvez até levasse sua família para morar naquele lugar bonito. E quando eles tivessem todos juntos naquele lugar mágico, já não brigariam ou se desentenderiam mais. Afinal, não teriam do que reclamar, seriam completamente felizes. Estariam na mais absoluta paz e harmonia.
Ao menos, era isso que ela pensava aos dez anos.
Aos quatorze essa imagem de perfeição começou a ser manchada pelo contato com pessoas de outras localidades, que eram tão infelizes quanto ela, e por uma consciência crítica mais apurada. Ela não era mais tão sonhadora assim, sabia que existiam lugares bem piores que aquele que nascera, mesmo que isso não tornasse sua realidade mais suportável.
Aos dezoito, quando ela finalmente terminou a escola, já não tinha mais grandes esperanças. Sua situação financeira não melhorara e ela descobrira que crescer não havia sido o bastante. Ela teria que trabalhar, juntar dinheiro e planejar. E fez tudo isso, mas a cada dia que passava sua tão esperada fuga parecia mais distante e borrada, esquecida em meio as brumas do tempo.
Aos vinte cinco anos, ela finalmente desistiu de plano tão descabido, se conformou com a vida que levava e se convenceu de que mesmo que se mudasse de cidade seus problemas não sumiriam. Que aquela vida luxuosa e feliz que via nas novelas nada mais eram que ilusões, que o mundo era assim mesmo, cheios de ruas esburacadas, cidades mal cuidadas e pessoas infelizes.
Aos quarenta, ela comprou uma casa, no mesmo bairro que seus pais moravam, e finalmente se livrou do aluguel. Viveu uma vida desbotada naquela cidade que tanto odiara. Já não tinha forças para sair dali. Já não tinha forças nem mesmo para odiar.
N/A: 30 Days Writing: Day 17 — Descreva um lugar ou alguém que não goste.