Ele sempre gostou de cadáveres. Mas não se preocupe, essa não é uma historia sobre assassinatos, nem mesmo sobre um serial killer louco e perigoso, pois, apesar do seu gosto peculiar, William nunca havia tirado a vida de ninguém, nem mesmo de animais. Nem precisava. O cemitério em que seu pai trabalhou como coveiro durante boa parte de sua infância e adolescência era cheio deles, todos os dias eram realizados os mais diversos tipos de enterros: homens, mulheres, jovens, idosos, gente de todo tipo e todas as classes sociais. Eles se estendiam por quilômetros abaixo daquela grama verde e bem cuidada, esquecidos por todos, mas não por Will. Ele crescera correndo e brincando por toda a extensão daquele velho cemitério conhecia todos os habitantes dali. Era, inclusive, o mais perto de amigos que ele jamais tivera.
Desde a mais tenra idade o cheiro de formol presente nos corpos embalsamados lhe causava uma estranha sensação de paz. Era o cheiro de casa, do lugar do qual ele pertencia. Talvez tenha sido essa criação tão incomum a responsável pelo desenvolvimento dos hábitos estranhos que adquiriu durante a vida adulta, mas ninguém tinha como saber ao certo e ele não se importava com as causas ou motivos, só sabia que era daquele jeito e que sempre seria.
Por isso, assim que atingiu vinte anos conseguiu um trabalho como assistente de legista em um necrotério na periferia da cidade e se afastou do cemitério onde havia passado a infância. As tardes a céu aberto com longos discursos, roupas pretas, lágrimas intermináveis e terra, muita terra, agora eram preenchidas dentro de uma sala pequena. Claustrofóbica para todos os que não eram dali, mas para William aquela pequena sala de paredes brancas, frias e impessoais havia se tornado rapidamente seu segundo lar.
Pois apesar do silêncio mortal, ele nunca estava só. Ainda tinha a companhia de seus tão queridos cadáveres, mesmo que não fossem os mesmos de antes, mesmo que o tempo que passavam juntos fosse menor. Havia se acostumado rapidamente com os novos amigos que encontrou ali, amigos que iam e vinham, já que dificilmente um corpo permanecia mais do que três ou quatro dias no necrotério, mas que eram tão queridos quanto seus amigos antigos. De fato, aquela sala proporcionou uma intimidade que ele não tinha em seu lar anterior, onde eles sempre eram separados por montes e montes de terra. Havia algo de mais especial naquele lugar, mais íntimo. Ele podia tocar, cheirar, apalpar e o que mais gostava de fazer, quando estava sozinho, era deslizar os dedos pelos corpos novos que chegavam, para sentir a textura e a dureza daquela pele azulada.
Ah! E aquela pele gélida fazia calafrios descerem por sua espinha. Os corpos eram sempre lindos não importando a causa da morte, ele aprendera a ver a beleza de furos de bala e corte de facas da mesma maneira que em infartos e overdoses de drogas. Sentia uma excitação crescente ao mínimo som do choque entre os instrumentos esterilizados, que só não era melhor que o rasgar silencioso que as lâminas faziam quando penetravam a carne pútrida e morta. E quando o legista chefe o deixava chegar perto dos corpos com um bisturi na mão era como se Will atingisse o êxtase. Ele sabia que era o único que se sentia assim, que todos os outros achariam seu trabalho, no mínimo, macabro e doentio, mas era tudo o que ele sempre quisera fazer na vida.
E então, quando achava que não poderia ficar melhor, ela chegou. Cinza, rígida e fria. Nunca descobriu seu nome, já que era um desses corpos sem identificação encontrados em becos escuros e lugares onde nenhum cidadão decente frequentava. Essa, em especial, havia morrido por overdose de drogas. Durante algum momento de sua breve vida havia experimentado heroína e sucumbido ao prazer rápido e fácil que a droga lhe proporcionava. Seu rosto ainda conservava a última expressão que havia feito, um misto de prazer e terror. Ela deve ter percebido, em meio as viagens proporcionadas pelo vício, que daquela vez havia exagerado. Talvez, quem sabe, tivesse tido tempo de tomar consciência da própria morte antes que a droga finalmente fizesse seu corpo colapsar.
Mas não importava agora, ela estava morta e tudo que Will conseguia pensar é que ela era a mulher mais bonita que ele já havia visto. Sua pele ainda não estava tão azulada, nem tão decomposta, e seus cabelos negros criavam um contraste harmonioso com o resto de seus traços. Seus olhos estavam vazios e sem foco, é verdade, mas ele conseguia visualizar os expressivos olhos castanhos que ela havia possuído em vida. Os pálidos lábios carnudos deviam ter sido de um vermelho vivo e o vestido curto e vulgar que usava quando chegou ali deveria ter sido a mais poderosa arma de sedução já criada.
William sentiu uma pontada em seu baixo ventre. Deslizou os dedos por seu braço inerte delicadamente, mas parou a caricia abruptamente assim que a porta foi aberta e o médico legista entrou no aposento, indiferente a presença de seu assistente. Ele havia tirado folga fora de época, deixando Will encarregado de boa parte das tarefas do necrotério, e agora havia acumulado autopsias, de modo que só poderia mexer naquela garota dali a cinco dias.
Cinco dias. Parecia a contagem para sua execução. A simples idéia de ter alguém tão medíocre cortando e mutilando aquele corpo perfeito fez Will entrar em pânico. Como ele poderia deixar o corpo dela ser profanado de tal forma? Não, não poderia. Foi então que, de modo impulsivo, decidiu que a roubaria. Era isso! Ele entraria na calada da noite e tiraria sua amada das mãos daqueles idiotas incompetentes. Se ela permanecesse consigo ninguém nunca mais lhe machucaria ou lhe faria mal, ele cuidaria dela da melhor forma que conseguisse. Eles seriam felizes juntos, sabia que sim.
Mas até então ele não poderia imaginar que não havia maneira de salvá-la. Que nem mesmo todo o seu amor seria capaz de impedir que seu corpo se deteriorasse. Afinal, assim que a vida é sugada seu receptáculo começa a apodrecer. Era um processo natural e inevitável. E nenhum dos enterros que assistiu durante o decorrer de sua vida lhe doeu tanto quanto a consciência daquele fato. Ele sentia seu coração pesar ao pensar que ela perderia aquela bela forma e viraria um monte de carne fétida e pútrida. Irreconhecível.
Ainda assim, Will não conseguia deixar de amá-la. Nem mesmo as reclamações dos vizinhos acerca do cheiro que saía de seu apartamento conseguia aborrecê-lo. Ele não se importava com cheiro, não enquanto pudesse ficar com ela. Mas vê-la se deteriorando mais e mais a cada dia que passava fazia algo dentro dele morrer ao poucos. E quando ele percebeu que em algum momento já não restaria nada dela, entrou em desespero. Não aguentaria o sofrimento. Mas tampouco era capaz de abandoná-la.
Ele sabia que a única solução para por um fim na sua dor era juntar-se a sua amada na morte.
Foi com grande determinação que ele pegou a pistola escondida debaixo do colchão e sem nenhuma hesitação colocou o cano na boa, dando uma última olhada para ela antes de apertar o gatilho. Foi simples assim, um estampido e tudo estava acabado. Ele finalmente se juntaria não só a sua amada, mas a todos os amigos que já tivera na vida.
Foi nos últimos instantes, enquanto perdia a consciência e sangrava no chão do quarto, que Will finalmente conseguiu ultrapassar a barreira que o separava de todos os que amava e conseguiu alcançar a verdadeira felicidade. Porque agora ele sabia: nunca houve nada que ele tivesse desejado tanto quanto morrer.